segunda-feira, 26 de abril de 2010

O Encontro: da diversão à reflexao

Postado por Thamara ツ às 04:58 0 comentários


O Encontro: da diversão à reflexão
(Fernanda Serradourada)


Assustadas com a recente morte de Rapunzel, cujo cabelo ficara preso na roda de um carro, quebrando o seu pescoço, e com a Bela Adormecida que, traumatizada com um desquite litigioso, está internada numa clínica fazendo sonoterapia, as quaro amigas mal conseguem tomar seu chá. Estes seus encontros semanais, outrora tão cheios de alegria, confidências e reminiscências estão se tornando aborrecidos.Cinderela suspira:

—Os tempos mudaram, nós estamos ficando velhas...

Chapeuzinho Vermelho ajeita distraidamente o seu chapeuzinho laranja ocre. Era mais uma vítima da mídia que, mesmo gostando tanto do vermelho, adotara o laranja porque era a última moda parisiense. Ela havia se envolvido, recentemente, num processo de agressão com o Lobo Mau (que, aliás, já estava envolvido em um processo de desapropriação com os três porquinhos).

—Não pode se queixar da vida, Cin. – observa Branca de Neve, cuja palidez havia cedido lugar a um bronzeamento artificial – Você casou com um príncipe, sua sapataria vai bem...

—Pois eu largaria tudo isso. Lembram-se daquele príncipe lindo, gentil e romântico com o seu cavalo branco, o sonho de toda mulher?Pois é menina, acabou se transformando num barrigudo que só sabe assistir futebol e beber cerveja enquanto eu cozinho, lavo e PASSO! E pensar que um dia eu fui chamada de Pantera Borralheira. Velhos tempos...

—Não acredito!

—Que canalha!

—E eu, gorda desse jeito e ainda chamada de Mariazinha... – quem fala é a irmã de Joãozinho, protagonista de um famoso caso de desencaminhamento de menores na floresta. Ela come compulsivamente. Seu analista já lhe explicou que ela come para se autopunir de um sentimento incestuoso por Joãozinho, que também é enorme de gordo.

—Você também sente falta dos velhos tempos, Branca? – diz Mariazinha.

—Deus me livre!Vocês não sabem o que era cuidar da casa para sete anões. Todos os dias fazer as setes caminhas, lavar sete cuequinhas...Uma vez um deles se embriagou e invadiu o meu quarto, mas com a ajuda da bruxa eu o atirei pela janela.

—Com a ajuda da bruxa?Mas vocês não eram inimigas?

—Que nada!As bruxas eram mulheres bonitas, inteligentes, insubmissas...Já viu onde vai dar, né? Com mulheres assim os homens ficaram com tanto medo que as chamaram de bruxas, e elas acabaram sendo queimadas na fogueira durante a Idade Média. Foi o pior massacre da literatura infantil...

—Coitadas...

—Bom, já que começamos com as revelações, vou contar do meu caso com o cocheiro. O príncipe, afinal, só queria saber de futebol e cerveja, quando muito ele queria acariciar o meu pé – diz Cinderela.

—O tal que era um rato e virava cocheiro com o toque de varinha mágica?

—É esse mesmo!

—E o seu príncipe encantado, Branca? O que acordou voe com um beijo depois da morte, depois que você mordeu a maçã envenenada.Você também se arrependeu?

—Só posso dizer que, comparando os dois, gostei mais da maçã.

—Vocês é que são felizes. – diz Cinderela, apontando para Chapeuzinho e Mariazinha, que está com a boca cheia de biscoito. – Não tiveram “príncipes encantados” em suas vidas. Vejam a Bela Adormecida, esta pelo menos teve a coragem de pedir desquite. Nós não podemos. O tal “e viveram felizes para sempre” é um compromisso moral. Parece que não temos saída. Quer dizer, ninguém pode nos culpar por termos amantes. Eu não posso ver um rato sem pensar num cocheiro e usar a minha varinha mágica. E a Branca aqui pega qualquer um também.

—Não sendo anão...

—Nós fomos bobas, isso sim. – continua Cinderela – A Rapunzel continuou com suas tranças porque seu príncipe encantado a proibiu de cortar os cabelos, e olhem o que aconteceu. Se no nosso tempo já existisse feminismo, Lei Maria da Penha...Nossas histórias seriam outras!

—Certo!Eu botava os anões a trabalhar para mim.E não seria comprometida com o príncipe só porque o beijo me ressuscitou. Ele não me compraria por tão pouco! – diz Branca de Neve.

—E eu, em vez de ficar em casa sendo subordinada ao príncipe, ia sair, arranjar um emprego, estudar Comunicação, sei lá... – diz Cinderela.

—Meu analista disse que a culpa do meu trauma de infância foi minha dependência excessiva do Joãozinho – diz Mariazinha.

—E eu me deixei enganar inocentemente por um lobo! – exclama Chapeuzinho

– Se já existisse a Lei Maria da Penha eu ganharia o processo de agressão com o Lobo Mau, e a Rapunzel não estaria morta!
—Poderíamos fazer algumas passeatas, queimar alguns sutiãs, idolatrar Simone Beauvoir...

—É isso aí! Mostraríamos quem é o verdadeiro sexo frágil e não seríamos discriminadas apenas por não termos uma genitália masculina entre as pernas!

—E nós não seríamos mais vítimas da mídia, nem de modas e tratamentos sádicos, teríamos mais amor próprio!

—Sim!Acabaríamos com aquelas piadinhas preconceituosas e idiotas, não é mesmo Cin?

Mas Cinderela não estava ouvindo. Seu olhar fixo num canto da sala e um sorriso malicioso. Lentamente, sem desviar o olhar, ela procura na bolsa pela sua varinha mágica.

—O que é Cin?

—Sssshh.Acho que vi um rato. E dos grandes!
 

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